O Efeito Matt Mercer e Critical Role

Há um bom tempo atrás surgiu um tópico no reddit com um tema, no mínimo curioso, sobre um tal de efeito Matt Mercer e Critical Role e como isso pode afetar a comunidade de narradores e jogadores, em especial para os de D&D e aqueles que estão chegando agora nesse passatempo.

Se você não conhece, Critical Role se tornou um programa popular no YouTube por mostrar partidas de D&D 5e jogadas por dubladores, atores e atrizes de voz. Eles focam na atuação e em partidas dinâmicas. Eles jogam RPG até mesmo figuras famosas de Hollywood (como Vin Diesel e Terry Crews). Para alguns é brilhante, enquanto para outros é frustrante, como é o caso do nosso amigo Mestre da Masmorra, que criou o seguinte tópico no fórum (numa tradução livre):
Como faço para vencer o efeito Matt Mercer? 
Eu estou jogando uma campanha com alguns novatos e estou lidando com muitos problemas comuns de jogadores iniciantes (aquele que nunca fala, aquele que precisa de uma aventura linear, o personagem Neutro e Bom sendo jogado como Caótico e Neutro e o personagem Caótico e Neutro sendo interpretado como Caótico e Mau). Ultimamente, no entanto, há uma nova situação com a qual estou tendo que lidar. Um terço do meu grupo se interessou por D&D por causa do Critical Role. Eu gosto de Matt Mercer tanto quanto eles, mas esses caras assistiram mais de 30 horas desse programa antes mesmo de segurar um D20. O anão acha que todos os anões têm sotaque irlandês, e o Draconato soa exatamente como o do programa do youtube (o que é bom, até encontrarem NPCs que são interpretado de forma diferente do programa). Fui abordado por metade do grupo e eles me perguntaram como eu planejava lidar com a ressurreição. Quando eu disse a eles que eu iria decidir quando o momento chegasse, eles me disseram como Matt faz. Nosso WhatsApp é cheio de vídeos do Geek & Sundry (canal onde são postadas as partidas do Critical Role) sobre como jogar RPG melhor. Não há nada de errado em como eles jogam, mas eu não sou Matt Mercer e eles não são o Vox Machina. Em algum momento, as expectativas irrealistas vão se encontrar com a realidade.
Critical Role se tornou a base de como meus jogadores pensam que o D&D funciona. Como eu mostro para eles a minha forma de jogar sem decepcioná-los?
Essa última frase é dolorosa; pensar menos de si mesmo porque alguém lhe compara com outra pessoa. Não façam isso. Nunca. Antes de eu comentar o que eu penso sobre o assunto, eis a resposta do próprio Matt Mercer (numa tradução livre), que se tornou o padrão de narrador ideal para muitos:
Ver algo assim me parte o coração. Independentemente disso, o fato é que nosso estilo de jogo é apenas isso... nosso estilo de jogo. Cada mesa é diferente e deveria ser! Se eles querem apenas "copiar" o que fazemos, isso não é muito criativo nem torna o jogo mágico de alguma maneira.

Eu acredito que é importante para qualquer grupo discutir as expectativas no início de uma campanha para que todos possam estar em sintonia e evitar algum tipo de desacordo. No entanto, a responsabilidade de todos na mesa é agregar à experiência de jogo para que todos aproveitem a história e não apenas o Mestre. Como vi em alguns comentários abaixo, você quer um estilo específico de jogo? Então esse compromisso cai sobre os seus ombros. Sincronize seu estilo e suas vontades com os dos outros jogadores e com o Mestre, e em algum lugar nessa mistura única você encontrará o estilo da sua mesa de contar histórias.  
Preciso também lembrar a seus jogadores de que somos uma mesa de atores profissionais, e eu tenho sido Mestre por mais de 20 anos. Passamos nossas vidas treinando habilidades específicas que nos permitem ficar tão imersos nos personagens quanto desejarmos. Qualquer um pode ir tão profundamente quanto nós, se desejar, mas SABENDO que o nível imediato de conforto e interesse é injusto e absurdo. Eles querem uma jornada emocional profunda e complicada como a de Scanlan? Então é bom que eles possam fazer isso assim como Sam fez. Não conseguem? Então sente-se e divirta-se encontrando sua própria forma de fazer. ;)  
Além disso, nosso estilo não é para todos! Droga, eu dei uma olhada nos comentários abaixo apenas para perceber quantas pessoas não gostam de nós, haha. Eu joguei com muitos jogadores diferentes, joguei muitos estilos com focos diferentes, e eu posso te dizer... há uma variedade muito divertida em como um TTRPG (Tabletop Role-Playing Game) pode ser jogado e eles estão limitando as suas chances de diversão com isso de tentar "jogar como nós". 
Enfim, eu digo que a melhor coisa a se fazer é ter uma conversa franca com eles sobre isso. Diga claramente que seu jogo será SEU jogo (ou seja, você e os jogadores juntos) e é SUA responsabilidade trazer para a mesa a experiência que eles querem ver nele. Mostre a eles esta postagem, se isso ajudar. De fato, mostre a eles esta mensagem:  
"Galera, relaxem. Seu mestre é fera e está fazendo isso para que VOCÊS se divirtam. Apreciem isso, ouçam, ajudem ele a conseguir isso e façam disso algo ÚNICO. Deixem as expectativas de lado e divirtam-se, como os amigos costumam fazer. ” 
De qualquer forma, sinto muito. Coisas assim não são minha intenção. As coisas estão estranhas e pouco amigáveis hoje em dia. Você vai se sair bem, amigo. <3

É triste perceber quantos narradores e jogadores se sentem frustrados com as suas capacidades após assistirem partidas online, feitas por profissionais da área, que possuem anos de experiência e treinaram habilidades específicas para isso por muito tempo (alguns jogos são até ensaiados), em lugar de focar em suas próprias habilidades e em curtir o jogo com os amigos. Na verdade, algumas figuras da internet parecem se esforçar em querer ser um exemplo a ser seguido e copiado.

Jogar uma partida de qualquer jogo é uma experiência intima compartilhada entre um grupo pessoas; normalmente amigos ou conhecidos. Eu digo experiência íntima porque nem todos os grupos gravam, fazem partidas ao vivo para outros assistirem ou postam relatos de suas sessões. Se formos contar a quantidade de canais e grupos que fazem isso, podermos dizer que menos de 1% dos grupos de RPG no Brasil compartilham algo de sua experiência pessoal na internet de alguma forma. Ou seja, as únicas pessoas que vão compartilhar os momentos divertidos, tristes, emocionantes, as conquistas e derrotas de nossas partidas somos nós mesmos.

Não devemos nos privar da nossa própria forma de jogar, de viver a experiência da história, apenas porque queremos fazer igual à galera daquele canal ou podcast que curtimos. Algumas partidas são combinadas sobre o ritmo de jogo e forma de jogar, apesar de a história e decisões ainda serem no improviso. Devemos ter nossa própria voz e atendermos apenas às nossas próprias expectativas, em lugar de queremos ser iguais a alguém.

O pessoal que joga RPG desde antes de surgir a internet, ou de sua popularização, sabe como era jogar assim: nós não fazíamos ideia de como outros grupos jogavam. Nós liamos os livros que tínhamos e jogávamos da forma que entendiamos e todos sempre estiveram de boa com isso. Mesmo hoje, quando estive no World RPG Fest de 2014 e no DOFF 2019, eu joguei mesas em estilos que eu nunca havia experimentado. Porque tantas exigências e expectativas se você quer apenas passar tempo com a galera? A não ser que você trabalhe na área ou desenvolva jogos, entenda a sua realidade e atenda apenas aos seus desejos e do seu grupo.

É normal querermos ser melhor no que gostamos de fazer. Mas não somos atores e atrizes profissionais, talvez ainda nem tenhamos tanta experiência quanto aqueles que assistimos. Na verdade, às vezes nem é alguém famoso que nos faz sentir assim. Talvez algum narrador ou jogador local, até mesmo do nosso grupo, afeta nossa maneira de vermos a nós mesmos ("nossa, como eu queria ser igual a ele") e isso só é bom até o momento em que nos faz querer evoluir dentro da nossa própria realidade, em lugar de nos travar em acharmos que não somos bons o suficiente.

Nós somos o melhor que podemos ser.

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