Como eu mantive a minha sanidade com os Mitos de Cthulhu e Allan Poe em tempos de pandemia

Eu passei por um problema pessoal que me impossibilitava de comprar livros com a regularidade que eu gostaria — em especial, livros de terror. Eu jogava Chamado e Rastro de Cthulhu por PDFs que eu havia comprado e mantinha no meu PC — alguns deles eu imprimia para usar nas mesas. Minha coleção sempre foi modesta e prática — eu tinha impresso aquilo que eu usaria na mesa de jogo, não mais, não menos.

Em Fevereiro de 2020, pela primeira vez em muitos anos, eu pude comprar meus primeiros livros de Call of Cthulhu originais, diretamente da Chaosium. Uma semana após a compra, o Brasil iniciava os preparativos para a quarentena e tudo ficou cada vez mais sério. Pouco antes de tudo acontecer, eu havia comprado um volume encadernado dos Mitos de Cthulhu de uma grande amiga (obrigado pela oportunidade Amélia), que também havia me vendido o livro The Complete Works of Edgar Allan Poe. 

Os livros de RPG começaram a chegar e a quarentena se intensificou. Estabelecimentos, praças, feiras e locais públicos foram fechados — na cidade onde moro, eles bloquearam as ruas, proibindo o estacionamento de carros e motos em vias públicas, e uma das pontes foi interditada. Havia um sentimento de medo e condenação por todo o lado. Ainda hoje há promessas de morte sendo sussurradas e as pessoas que precisam sair de casa, o fazem assustadas. Muitos encontraram formas diferentes de lutar contra o isolamento social e fugir do pavor crescente de uma reviravolta apocalíptica, da impotência diante de uma situação que nunca enfrentou: videoconferência, jogos online, aplicativos divertidos, maratona de séries, sequências de filmes, horas e mais horas de stand ups e comédia. 

Sofrimento é algo singular e subjetivo. Cada pessoa sente de uma maneira diferente e, por ser uma situação com a qual nunca lidamos antes, devemos estar aptos a experimentar novas formas de nos cuidar; reaprender o que nos faz bem em um momento para o qual nunca estivemos preparados para enfrentar. Nos permitir novos sentimentos, crenças, leituras e vivências. Talvez aquilo que nunca tivemos a chance de conhecer seja a calmaria que procuramos. Claro que, casos sérios como ansiedade crônica, depressão, pânico e outros, devem ser cuidados com o acompanhamento de um profissional. 

Para mim, a fuga foi ler Lovecraft e Poe. Eu tenho lido os livros de RPG da mesma forma. O clima depressivo e decadente das obras me traz uma tranquilidade mórbida. Talvez por se tratar de uma ficção, os sentimentos de amargura e esmorecimento não estão ligados a algo real, como quando eu vejo os noticiários sobre a crise mundial, e isso desvia meu desalento, transformando minha tristeza em uma reflexão sobre a fragilidade da vida. Talvez eles me ajudem a aceitar a condição humana e o destino inevitável que nos aguarda, me fazendo pensar sobre meus valores e prioridades e o quão eu tenho me dedicado aquilo que é importante para mim, enquanto estou vivo. Talvez eles apenas me sirvam como passatempo que me distancia por um momento da realidade que estamos passando — assim como outros fazem com séries, filmes e reuniões online —, e isso é reconfortante. Ou talvez seja tudo isso ao mesmo tempo e mais, mas que ainda não consigo imaginar ou expressar o que é.

Hoje, mais que nunca, eu tenho lido todos os livros de terror que eu gostaria. É isso que me faz bem — que me ensina valores sobre a vida e sobre mim. Finais felizes não me satisfazem, e isso pode acontecer porque eu não quero ter a falsa esperança de que tudo um dia se resolverá de maneira milagrosa — um paraíso de paz e imortalidade onde haverá apenas justiça e igualdade. Eu quero estar bem e crendo que vou passar por tudo isso de uma maneira que eu esteja pronto também para enfrentar o que vem depois e que ainda não sei o que é. E que terei bons momentos com amigos e familiares, e momentos difíceis também, como sempre foi. E é dessa forma que minhas leituras têm me confortado e preparado minha mente. Vamos enfrentar tudo isso juntos.

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